TOC, TOC, TOC

Nina Horta (uma predestinada, como diria Zé Simão!) escreveu um texto delicioso ontem, em sua coluna, na Folha.

Resposta à menina pequena
O bom cozinheiro é obsessivo com essa história de limpeza, e você vai acabar obsessivo também

Menina pequena que me pede como aprender a cozinhar. O que fazer para começar? Depende. Você ainda não sabe se será profissão, vocação, missão ou hobby. Vá aprendendo ao deus-dará e vivendo a vida. Estude bastante, aprenda uma língua – inglês, de preferência – leia muito, vá ao cinema, ao teatro, assista TV, aprenda a costurar ou bordar ou jogar bola. Tudo isso vai ser importante na hora de cozinhar.

Não se esqueça de jardinagem, nem de natação ou do salto de obstáculos e das pequenas e deliciosas coisas da vida, como tomar café de manhã sem ninguém por perto, numa manhã de sol brando.

As receitas propriamente ditas são recortes de um tempo, de um lugar, não são tão importantes. Mas é uma época divertida aquela em que se monta fichas, cadernos, cola-se recortes, anota-se no iPad.

Se quiser cursar gastronomia, tudo bem, mas qualquer outra que você curse vai ter o mesmo efeito, se começar a trabalhar com um bom chef num bom restaurante.

Não é sopa, mas é lá que você vai ver se gosta mesmo de cozinha. A disciplina é férrea, não tem hora para brincar. Diga adeus àquela minissaia vermelha, às flores no cabelo, à barriguinha de fora.

Cozinheiro que é cozinheiro tem o maior respeito e orgulho do uniforme.

Mas, não pense que é ficar toda linda, de toque branco e calça xadrez fazendo risoto de violetas.

Adivinhe quem vai lavar o chão no fim do dia? E deixar as bancadas brilhando como novas? Você, menina.

Se não suportar esse lado de limpar, lavar o que os outros sujaram, se não for paciente e obstinada, desista já enquanto é tempo.

Geralmente o bom cozinheiro é obsessivo com essa história de limpeza e você vai acabar obsessiva também.

A cozinha pede e a gente obedece, é uma coisa artesanal que pede muito as mãos, o jeito e a obediência aos chefes, o respeito pelo saber. Todo esse tempo você estará crescendo por dentro. Não que você não possa aprender algumas coisas sozinha, mas demora mais.

Tem uma hora que as primeiras técnicas vão ser dominadas e você lá, pimpona, toc, toc, toc, com aquela faca maravilhosa comprada com seu primeiro salário e guardada num envelope de pano, só sua, na sua faca ninguém mexe. Pode começar daí um comichão de criar.

Acho que li num livro do Bourdain, não me lembro, de um chef que entrevistava os candidatos a cozinheiro e dizia: “Depois escuto essa conversa de flores na salada, daqui a dois anos venha conversar comigo, mas agora quero você assando 15 pernis ao dia, na perfeição, ok?”

É uma profissão sofrida que te rouba muito da vida social, pois quando estão festejando o cozinheiro está lá, no fogão. Dá muito e muito prazer, também. Aprender pela vida inteira é um belo desafio.

Como a cozinha está ligada a tudo e todos, será um estudo sem fim, mas totalmente misturado a lugares, pessoas, costumes, tradições, técnicas novas. Prefere ficar no fogão do que na festa? Já é um sinal de “borralheira” que pode te levar um dia a Cinderela. Agora, se você escolhesse ser pianista ou médica seria muito diferente? Acho que não. Voltamos a conversar.